joão do rio - as religioes no rio de janeiro
um texto fenomenal de joao do rio, já em dominio publico:
Fomos entrando para a sala de jantar, com móveis de vinhático e garrafas por todos os aparadores.
- Nem de prepósito - fez o cabra. - O médium está ali proseando com a gente.
O médium é um tipo de hébèté, de quase cretino. Lourinho, de um louro de estopa, com a face cor de oca e as gengivas sem dentes, é carteiro de 2.ª classe dos Correios. Tem a farda suja e a gravata de lado. Durante todo o tempo em que o mulato nos conta as suas curas, ele sopra monossílabos e remexe a cabeça, dolorosamente, como se lhe estivessem enterrando alfinetes na nuca.
Um mal-estar nos invade, como o anúncio de uma grande desgraça.
- Há tipos que usam ervas para fingir que é espírito - diz o curandeiro. - Eu não; cá comigo é a verdade. Um desses oraras põe noz-vômica na água para os doentes lançarem e diz que é o espírito limpando lá dentro. Pecado! Apre! Eu agora tenho um doentinho. Veio-lhe uma febre de queimar. A mãe não tem quase dinheiro, mas não o gasta na farmácia. Eu o curo logo...
De repente parou. Pela escada subia um tropel, e uma mulher magra, lívida, aos soluços, entrou na sala.
- Então que há?
- O pequeno está mal, muito mal, revirando os olhos. Salve-mo! Salve-mo!
- É o tal que eu lhes dizia. Não se assuste, D. Aninha. Eu já lhe disse que o pequeno ficava bom; os espíritos querem. E para nós: venham ver.
Levou-nos ao terraço, ao fundo, mergulhou um litro vazio numa tina de água, encheu-o, colocou-o em cima da mesa.
- Durma, Zezé, durma!
E esfregou as mãos na cara do carteiro, subitamente em pranto. O homem revirava os olhos, sacudia a cabeça.
- É o espírito; veio, quer que seu filho fique bom... E de repente o diabólico começou a estender as mãos do carteiro choroso ao gargalo do litro.
- Não está vendo o espírito entrar? Olhe... No litro cheio bolhas de oxigênio subiam vagarosamente e a pobre mulher, agarrando a mesa, com os olhos já enxutos, seguia ansiada o milagre que lhe ia salvar o filho.
De repente, porém, uma voz estalou embaixo, na ventania:
- Mamãe! Mamãe! Depressa! Joãozinho está morrendo, Joãozinho morre!
Essas palavras produziram um tal choque que nós saímos desvairados, de roldão, com o mulato e a mulher, sentindo um travor de morte nos lábios, angustiados, lembrando-nos dessa criança que a inconsciência deixara morrer. E na ventania cortada de chuva, entre as variadas recordações dessa vida de oito dias horrendos pelos antros escuros onde viceja o espiritismo falso, a visão dessa criança perseguia-nos cruciantemente, como o remorso de um grande e infinito mal."
http://www.biblio.com.br/conteudo/PauloBarreto/asreligioesdorio.htm
Fomos entrando para a sala de jantar, com móveis de vinhático e garrafas por todos os aparadores.
- Nem de prepósito - fez o cabra. - O médium está ali proseando com a gente.
O médium é um tipo de hébèté, de quase cretino. Lourinho, de um louro de estopa, com a face cor de oca e as gengivas sem dentes, é carteiro de 2.ª classe dos Correios. Tem a farda suja e a gravata de lado. Durante todo o tempo em que o mulato nos conta as suas curas, ele sopra monossílabos e remexe a cabeça, dolorosamente, como se lhe estivessem enterrando alfinetes na nuca.
Um mal-estar nos invade, como o anúncio de uma grande desgraça.
- Há tipos que usam ervas para fingir que é espírito - diz o curandeiro. - Eu não; cá comigo é a verdade. Um desses oraras põe noz-vômica na água para os doentes lançarem e diz que é o espírito limpando lá dentro. Pecado! Apre! Eu agora tenho um doentinho. Veio-lhe uma febre de queimar. A mãe não tem quase dinheiro, mas não o gasta na farmácia. Eu o curo logo...
De repente parou. Pela escada subia um tropel, e uma mulher magra, lívida, aos soluços, entrou na sala.
- Então que há?
- O pequeno está mal, muito mal, revirando os olhos. Salve-mo! Salve-mo!
- É o tal que eu lhes dizia. Não se assuste, D. Aninha. Eu já lhe disse que o pequeno ficava bom; os espíritos querem. E para nós: venham ver.
Levou-nos ao terraço, ao fundo, mergulhou um litro vazio numa tina de água, encheu-o, colocou-o em cima da mesa.
- Durma, Zezé, durma!
E esfregou as mãos na cara do carteiro, subitamente em pranto. O homem revirava os olhos, sacudia a cabeça.
- É o espírito; veio, quer que seu filho fique bom... E de repente o diabólico começou a estender as mãos do carteiro choroso ao gargalo do litro.
- Não está vendo o espírito entrar? Olhe... No litro cheio bolhas de oxigênio subiam vagarosamente e a pobre mulher, agarrando a mesa, com os olhos já enxutos, seguia ansiada o milagre que lhe ia salvar o filho.
De repente, porém, uma voz estalou embaixo, na ventania:
- Mamãe! Mamãe! Depressa! Joãozinho está morrendo, Joãozinho morre!
Essas palavras produziram um tal choque que nós saímos desvairados, de roldão, com o mulato e a mulher, sentindo um travor de morte nos lábios, angustiados, lembrando-nos dessa criança que a inconsciência deixara morrer. E na ventania cortada de chuva, entre as variadas recordações dessa vida de oito dias horrendos pelos antros escuros onde viceja o espiritismo falso, a visão dessa criança perseguia-nos cruciantemente, como o remorso de um grande e infinito mal."
http://www.biblio.com.br/conteudo/PauloBarreto/asreligioesdorio.htm